Um quer vender o ativo e o outro quer comprar. As duas pontas precisam avaliar se vale a pena fazer negócio
Por Neide Martingo, Valor Investe — São Paulo
De um lado, o investidor. De outro, a pessoa que tem um precatório para receber e não pode esperar por anos e anos por isso, como costuma acontecer. Ambos foram um mercado poderoso. Os precatórios estão dentro da classe dos ativos alternativos e chamam a atenção dos investidores que já têm suas reservas e possuem um montante sobrando.
O investimento em precatórios é para quem tem apetite por risco. Esse risco já está calculado no preço oferecido por ele ao dono do ativo. É levado em conta, por exemplo, o tempo que pode demorar para receber o dinheiro.
A vantagem é que esse investidor pode esperar. E a espera vale a pena. Ele compra com deságio e pode ter um bom ganho.
Em média, o percentual que o investidor oferece ao dono original do precatório estadual é de 30% sobre o valor do ativo. Ou seja, se o precatório é de R$ 100 mil, a pessoa receberá R$ 30 mil. Se for federal, o número, em média, é de 55%. E, para os precatórios federais orçados para 2024, de 40%.
A duração de uma demanda judicial varia de foro para foro. E também é preciso levar em conta se é de âmbito municipal, estadual ou federal. De maneira geral, é possível afirmar que uma ação judicial, que percorra todas as instâncias judiciais até o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou Supremo Tribunal Federal (STF) não terá duração inferior de uma década.
Tradicionalmente uma empresa especializada dá suporte ao investidor, calculando quanto ele pode oferecer por um precatório. Cada ativo, dadas as suas peculiaridades, possui uma negociação própria. O custo pelo trabalho de identificação, validação e intermediação de ativos é suportado pelos investidores. Os donos dos precatórios não arcam com essas despesas.
Por isso o risco tem que valer a pena. E vale. Quanto antes o dinheiro for liberado, melhor para o investidor, já que maior será o desconto no quanto vai se pagar ao dono original do precatório. Vamos seguir o exemplo do precatório estadual, que tem um pagamento médio de 30% do valor. O investidor paga R$ 30 mil num precatório de R$ 100 mil. E, digamos, vai esperar dez anos para receber o montante. Se isso acontecer, o ganho será de 12,8% ao ano. Porém, se o prazo de estender para 20 anos, o índice cai para 6,2% ao ano.
Tudo isso é calculado para que o investidor não perca.
Na outra ponta está o dono do precatório. Muita gente tem um precatório e nem imagina. Em 2012, a aposentada Sonia Regina Feliconio Lima finalmente deu atenção às várias tentativas de contato de uma advogada. Ela garantia que Sonia tinha direito a receber os precatórios do marido, Raphael Feliconio, técnico de laboratório da área de medicina nuclear da Universidade de São Paulo (USP), que tinha morrido dois anos antes.
Raphael exerceu o cargo por aproximadamente 30 anos e morreu sem contar à família que tinha direito ao montante, que se referia a reajustes salariais não pagos e contestados na Justiça. Depois de 28 anos correndo na justiça, a família dele recebeu R$ 60 mil do processo.
A filha de Raphael, Andrea, que estava para dar à luz, disse que foi um presente do pai para a neta Sofia, que não conheceu. “Esse dinheiro ajudou muito. Paguei a equipe que fez o parto e quitamos algumas dívidas”.
Essas histórias se repetem e os envolvidos, muitas vezes, nem imaginam que são protagonistas delas. Segundo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o setor movimenta aproximadamente R$ 200 bilhões. Isso equivale a 25% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
O universo bilionário dos precatórios
Valores em R$ Bilhões
Conselho Nacional de Justiça (CNA). Elaboração: Valor Data
Precatório, ativo que só existe no Brasil, é o reconhecimento judicial de uma dívida que um órgão público tem com uma pessoa física ou jurídica. Como o pagamento pode demorar décadas, o credor acaba se esquecendo dela – às vezes tem idade avançada – e quando a quantia é liberada, nem fica sabendo. Ou pode já estar morto e não avisou a família sobre o assunto.
Normalmente os processos são feitos por sindicatos. Os advogados vão em busca das famílias para que os pagamentos sejam feitos. Muitas vezes as pessoas não são encontradas. E o dinheiro fica no banco.
Para saber se uma pessoa possui algum processo que tenha gerado ou ainda possa gerar um crédito passível de pagamento por precatório, há dois caminhos iniciais que podem ser percorridos em paralelo. Isso vale também para as famílias que querem saber se alguém falecido tem direitos.
O primeiro, de acordo com Fúlvio Rebouças, advogado especialista em Direito Público da Jequitibá Investimentos, é pesquisar o nome da pessoa nos endereços eletrônicos dos Tribunais (TJ se a carreira for municipal ou estadual e TRF se a carreira for federal). Isso cobrirá a possibilidade de ações individuais ou de pequenos grupos.
O segundo é por meio do sindicato da categoria profissional à qual pertencia o servidor público, e verificar se existem ações coletivas. “Não é incomum que, mesmo em vida, os servidores e servidoras, na condição de substituídos processualmente, não tenham ciência das discussões judiciais travadas em seu interesse”, explica Rebouças.
Identificada a existência de um precatório, é preciso pensar se há interesse em antecipar o recebimento dele. Há um grande mercado especializado em comprar precatórios. Se a resposta for sim, a primeira providência é regularizar a representação processual. Isso pode ser feito com a habilitação dos herdeiros ou sucessores na ação original, informando o óbito e a consequente solicitação de transferência da titularidade sobre os créditos a eles.
O procedimento de habilitação pode ser conduzido por qualquer advogado. Reconhecida a condição de herdeiros e novos titulares ao crédito, cada qual poderá transacionar seu quinhão, pelos mesmos caminhos que competiriam ao credor original.
É feita uma análise de crédito para saber se o credor tem dívidas grandes. Esse processo leva, em média, 10 dias. Quando estiver tudo aprovado, o dinheiro é liberado em questão de horas. O percentual cobrado pelos investidores que compram os precatórios varia bastante. Pode ficar entre 20% e 75% do valor, dependendo das características dele. Se a pessoa tem R$ 300 mil para receber, pode receber, por exemplo, R$ 90 mil (um desconto de 30%).
O advogado fala sobre a chamada “máfia dos precatórios”, tão criticada pelo governo. Ele ressalta que existe um mercado para esse ativo, que beneficia pessoas e famílias inteiras. “Já houve casos de credores que moram em cidades bem pequenas. Quando eles receberam o valor dos precatórios, investiram em negócios como uma pequena fazenda, ou uma loja. Isso fez com que a economia local melhorasse”.
“Uma pessoa que está com um problema de saúde, com idade avançada, não precisa vender um imóvel para ter recursos. Igualmente para alguém que queira que o filho vá fazer um curso no exterior, importante para a carreira dele. O adiantamento do valor dos precatórios pode ser uma solução. Há quem reclame sobre o percentual de desconto aplicado, na hora da compra do ativo. Mas o credor verá que vale mais a pena vender os precatórios e investir bem, do que esperar décadas, muitas vezes. A rentabilidade é bem maior, ressalta Ernesto Schlesinger, especialista do mercado em finanças da Jequitibá Investimentos.
A empresa foi criada há um ano. Schlesinger detalha que, desde a sua inauguração, foram identificados R$ 2 bilhões em precatórios. Desse total, R$ 300 milhões foram negociados com fundos de investimento e outros tipos de investidores. “Já atendemos mais de 150 credores. E temos fila de aproximadamente mil pessoas que querem negociar seus precatórios”.
FONTE: VALOR INVESTE